Cavalo possessão, cavalo batuque, cavalo palavra. ''''''''Longe da chicotada dada no cavalo do conto Kholstomér (1886), de Tolstói (cavalo cuja voz conduz a narrativa, dando origem a um tipo de estranhamento na literatura, como escreveu Viktor Chklovsky em A arte como procedimento, de 1917), e mesmo do cachorro que permitiu ao cineasta Jean-Luc Godard dizer Adeus à linguagem (2014), Adeus, cavalo reúne a experiência da possessão e a vida dos despossuídos em uma linguagem galopada. ''''''''Tenho a voz de um cavalo''''''''. Cavalo bom. Estou possuído. Uma voz móvel, solta, torna-se um oráculo ambulante, fazendo das repetições da palavra cavalo não apenas um refrão, mas agrupamentos temporários que recuperam formas teatrais estabilizadas no Ocidente em no mes como Ésquilo, Shakespeare, Racine, Beckett e Artaud. Parece que as falas produzidas por esses autores estão no mesmo barco, cujo ponto de partida foi a própria península ibérica com a noção barroca de Theatrummundi, isto é, o mundo como um grande teatro. Assim, o espírito barroco, já presente em Sermões (Iluminuras, 2015), mistura-se e perde-se em formas teatrais mais instáveis. Nessas formas teatrais instáveis e não nomináveis, que dependem tanto de entidades de um mundo oculto quanto do '''' ''''ritmo sincopado que há na lama'''''''', dos ''''''''desastres que a chuva causa'''''''', do ''''''''passo das inundações e dos bichos mancos e sem asa'''''''', ouvem-se ainda os gritos dos peregrinos que bradam em refrão ''''''''eu pago'''''''', como se tivessem o direito de trocar catástrofes por catarses, uma vez que compraram o ingresso. A troca, todavia, é mais complexa. Nuno Ramos é um autor-cavalo que busca equivalências impossíveis. Por exemplo, em um dos filmes que fez para a série ''''''''Ensaio sobre a dádiva'''''''', cavaloporPierrô (2014), acontece uma troca de um pierrô por um cavalo. Dois motociclistas perseguem e sequestram um pierrô em um parque de diversões abandonado e vão até uma casa para trocá-lo por um cavalo. Depois da troca, quando liberado, o cavalo vaga sozinho pelas ruas de uma cidade vazia. Em Adeus, cavalo, lemos que ''''''''a técnica do ator é a da memória feita cavalo - no sentido galope do termo, quando o animal reconhece o caminho de casa depois de um longo passeio. É a técnica da fuga tran sferida à glote, à narina, às partes externas do grande fole. A soma das vozes fugindo em distorções da garganta, matizes agudos e graves, trejeitos sutis, pigarros. No entanto, olhando para trás, reparando bem, é possível perceber os pequenos sinais